Quando
cheguei em casa, sentei-me numa cadeira ao lado da cama. Sentia-me
superior a todos os outros mortais, como se de repente, tivesse
alcançado de mim mesmo a indulgência por já não ter dezoito anos de
idade. Como se a juventude, de supetão, já não tivesse valor. “Meus
filhos dependem de mim, dependem de minha existência!”, pensei com uma
vaidade que amargava em minha boca.
Num momento de
introspecção, vi e revi passagens de minha longa vida. Repeti para mim
mesmo: “Dependem de mim!”. Senti-me sólido, como uma rocha de milhões de
anos que sobrevivera até a ação dos mais impetuosos ventos. Achei-me
até mesmo um pouco pesado. Depois, por instantes que pareceram uma
eternidade, contemplei as paisagens que emergiam de meu subconsciente.
Era como se
flutuasse, cheio de gritos mudos e de esperanças sem perspectivas, de
brilhos sombrios, de figuras e de perfumes mortos, flutuava à margem do
mundo, entre parênteses, inesquecível e definitivo, mais indestrutível
do que um mineral, e nada, nada mesmo me podia impedir de ter sido algo
ou alguém. Estava sofrendo uma metamorfose, talvez a última. Meu futuro
coagulava como o sangue de um animal morto na estrada. Uma vida (pensei)
é feita de um futuro projetado, como os corpos são feitos de os átomos e
como a alma é cheia de um vácuo. Baixei um pouco a cabeça. Pensava na
própria vida.
O futuro
penetrara-me até à medula. Tudo em mim estava em suspenso. Os dias mais
recuados da minha infância, o dia em que disse ser ateu, o dia em que
disse: “Serei importante”, apareciam-me agora, como um futuro
particular, como um minúsculo céu pessoal e bem desenhado em cima de
mim, e esse futuro era eu, eu tal qual sou agora, cansado e amadurecido,
talvez até um pouco apodrecido.
Esses
pensamentos tinham poder sobre mim agora, sem poder escolher em que
pensar ou do que lembrar, minha mente castigava-me com remorsos
esmagadores porque o meu presente, cético e negligente era agora o meu
velho e aniquilado futuro dos tempos de meu passado. Era por esse futuro
que eu tinha esperado mais de vinte anos? Era desse homem cansado, que
uma criança dura exigira a realização de suas esperanças? Dependia desse
coitado atual que os juramentos infantis permanecessem infantis para
sempre? Ou seria este o sinal de que um destino de fato existe e não há
nada que possamos fazer para fugir das engrenagens do tempo?
Meu passado
sofria açoites sem trégua. Constantes retoques do presente. Cada dia
vivido destruía um pouco mais os velhos sonhos de grandeza, e cada novo
dia tinha novo futuro. As coisas não paravam de mudar, numa constante
tão severa que dava calafrios olhar muito adiante, e ânsia ao tentar
olhar para tudo. Com esse frenesi em minha mente, via tudo ao tempo em
que não enxergava nada. De cena em cena, de imagem em imagem, de futuro
em futuro minha vida deslizava rapidamente diante de meus olhos
entreabertos, em direção a lugar nenhum. Olhando em direção ao nada.
Pensei em Eunice. Estava jovem ainda, e a vida dela, como a minha, não
fora senão uma espera. Existiu com certeza, num outono do passado, uma
menina de cabelos ruivos, que jurara amar-me.
Ainda ontem,
obscuro e vacilante, eu esperava encontrar o sentido do futuro, ainda
ontem ela esperava viver comigo e ser amada um dia após o outro. Os
momentos mais cheios, mais pesados, as noites de amor que lhe tinham
parecido mais eternas, não passavam de esperas. Não havia tido que
esperar. A morte desabaria sobre todas essas esperas algum dia,
parando-as, aniquilando-as totalmente, se é que se pode aniquilar pela
metade. Elas continuavam imóveis, mudas, sem objetivo, absurdas. Não
tinha havido nada que esperar. Nunca ninguém saberia se eu teria afinal
sido amada por Eunice. A pergunta não fazia sentido para mim agora.
Eu estou
morrendo, não há mais um gesto a fazer, nem uma carícia, nem uma prece, e
prece não farei mesmo! Já nada há senão esperas de esperas, nada mais
senão uma vida vazia, de cores confusas, e que se abatia sobre mim. “Se
eu morresse hoje (pensei) ninguém saberia se estava realmente confuso ou
se tinha ainda possibilidade de me salvar de mim mesmo”. Não saberiam
se eu me sentia grande ou amado. Não saberiam absolutamente nada de mim,
não deste Edson que sou agora. Não neste momento. Eles falariam de
outro Edson, o Edson que muitos acreditam que conhecem.
De volta ao
meu quarto, regressando de uma viagem estática, olhei novamente para a
arma em minha mão. Que covarde que sou (pensei). Mesmo aniquilado pelo
tempo, velho, pobre, fracassado e cansado, mesmo assim eu não ouso levar
a cabo minha vontade. Pela centésima vez em cem dias eu desisto de
morrer. Mas deve ser assim mesmo. Sou racional, sou um animal
consciente, e é isso que a consciência faz do homem... Um covarde. Um
covarde de 70 anos.
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