quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A pílula da felicidade

Por Noreda Somu Tossan

Uma das melhores coisas que a filosofia despertou em mim, foi a capacidade de questionar. Não só questionar para poder debater com amigos e outros blogueiros, mas sim, avaliar tudo aquilo que vejo e depois digerir este conteúdo e quando possível, escrever sobre ele com minhas próprias palavras. Uma dessas maravilhas é a capacidade de não mais assistir a um filme e não fazer uma avaliação crítica de seu conteúdo. Pois bem, assisti recentemente a um filme chamado “Sem limites”, onde um jovem escritor com bloqueio criativo se vê desesperado por não conseguir escrever seu livro.

Casualmente ele encontra um amigo que lhe oferece uma pílula misteriosa, e daí para frente tudo em sua vida muda. Sua capacidade cognitiva é elevada ao extremo e sua cabeça se torna um turbilhão. Me perguntei se esta pílula seria possível com os avanços na área da farmacologia e neurociência. Pesquisei aqui e ali e quero fazer um breve relato sobre os males e os benefícios dos avanços da tecnologia. Boa leitura.

Muito antes de Heidegger formular sua crítica romântica à tecnologia e nos falar de niilismo, o sociólogo alemão Max Weber já preconizava que a época moderna se caracterizaria pelo desencantamento do mundo. Desencantar-se é uma característica inevitável do processo de racionalização provocado pela ciência e pelo surgimento das sociedades industriais. A nova imagem do mundo que se consolidou ao longo século XX visou aniquilar com a religião e com tudo que poderia haver de mágico na nossa concepção de universo.

No século XXI assistimos a mais um passo nessa direção: o desencantamento do "eu". As novas ciências, em especial a neurociência, nos convidam a abandonar a imagem do ser humano como criatura dotada de uma alma imortal, que seria uma centelha do divino. Temos todos um cérebro igual, de onde se quer inferir que somos todos iguais. Mas isso pode soar tão absurdo como querer dizer que o cardápio de todos os restaurantes do mundo deveria ser igual porque o estômago humano é igual em todos os lugares e culturas.

O desencantamento do “eu” visa à dissolução da subjetividade. A ciência estaria tentando profanar um dos últimos bastiões da Religião e da Filosofia ao buscar uma explicação científica da natureza da consciência humana. Contra essa iniciativa, que parece tão drástica, mas, ao mesmo tempo reconhecida como inexorável, cada vez mais surgem grupos humanos que se agarram às crenças mais bizarras ou à fé fundamentalista. O fundamentalismo seja religioso ou político, tornou-se uma marca da vida contemporânea tanto quanto a ciência, embora se alastre predominantemente nas sociedades pré-tecnológicas do terceiro mundo.

Essa avalanche sobre o “eu”, protagonizada pela neurociência, manifesta-se, sobretudo, no uso crescente de drogas que produzem estados alterados de consciência. Sabemos que todas as sociedades humanas sempre tentaram, por meio da legislação, impor uma política da experiência ou uma espécie de ética da consciência, que visa banir as drogas proibidas, nem sempre com justificativas médicas ou científicas aceitáveis.

Mas agora não se trata mais apenas de banir as drogas ilegais. É preciso discutir as drogas lícitas que produzem estados alterados de consciência. As tentativas de suprimir as tristezas e a falta de atenção das crianças na escola levaram a uso quase que indiscriminado de antidepressivos e de substâncias como a ritalina. As conseqüências desse processo já se fazem sentir até na modificação da psicologia popular, na qual já não se fala: “Estou triste”, mas “Estou deprimido”.

Mas será que se pode exigir das pessoas que não se entristeçam ou não se angustiem? Em um futuro próximo é possível que o uso dessas drogas para melhorar o humor e o aprendizado passe a ser por parte dos empregadores (item da cesta básica) e pelos professores (farão parte da merenda escolar). E alguém poderia proclamar: por que não? O exército americano já obriga seus soldados a ingerirem algumas drogas que podem fazer que eles percorram grandes distâncias carregando equipamentos geralmente muito pesados sem, entretanto, sentir cansaço.

Não faz muito tempo, a neuro-farmacologia descobriu algumas substâncias que induzem a experiência religiosa. Ora, será que essas substâncias não deveriam ser consumidas por todos e o Estado declará-las obrigatórias? A religião é mais confortável que o ateísmo, disso já sabia o velho Kant. Então por que não disseminar a religiosidade? Afinal, indivíduos e sociedades religiosas serão, supostamente, mais pacatos e administráveis... Será esta a “pílula de Deus”, já que existem pílulas para tantas outras coisas.

A questão de fundo, contudo, continua a mesma. O que torna alguns estados alterados de consciência mais desejáveis que os outros? A neuro-farmacologia trouxe, a reboque, um amplo leque de dilemas éticos e força novas pautas de discussão filosófica. Afinal, o que define um bom estado de consciência e quais, dentre todos os que podemos ter, devem ser declarados ilegais ou inaceitáveis? Essa é a pergunta principal que deve nortear uma ética da consciência, já que vivemos (e viveremos) predominantemente em estados alterados de consciência, produzidos pela ingestão, cada vez mais freqüente, de drogas legais ou ilegais. Afinal, desde a invenção do Prozac, ingressamos definitivamente no admirável mundo novo de que nos falava Aldous Huxley.

Não estamos preparados para a demolição do “eu”. Se há uma década temíamos que máquinas se tornassem conscientes, hoje, temos de temer que humanos percam a consciência. Não há nada mais abundante no planeta do que seres humanos, e eles podem se tornar úteis para os propósitos de uns poucos por maio da supressão da consciência. A supressão da consciência tem se revelado um investimento menor, do ponto de vista econômico, do que a construção de robôs conscientes. Essa é a nova forma que a angústia passou a ter a partir do século XXI.

A ética da consciência precisará nos ajudar a escolher entre os possíveis estados alterados de consciência no intervalo entre a “angústia mórbida”, que não nos permite sequer levantar da cama, e o “alienado feliz”, aquele que Sartre chamava de “salaud”, ou o idiota imune à própria angústia. Não será uma escolha nada fácil.

Noreda Somu Tossan

Fonte: Filme "Sem limites"
Fonte: Revista Filosofia nº 60

2 comentários:

  1. Lexotan: Os tranquilizantes benzodiazeínicos (praticamente todos os tranqulizantes usado na prática médica) são medicações bastante seguras que só não tiveram sua utilização mais disseminada devodo ao potencial de dependência que pode conferir, e que na prática é bem menos perigoso do que geralmente se supõe.

    Mas sendo os tranquilizantes aproximadamente equivalentes porque alguns são mais utilizado que outros? Basicamente devido ao marketing feito sobre eles. Como o princípio ativo do lexotan (o bromazepan) é relativamente suave e como quem mais prescreve tranquilizantes são os clínicos, cardiologistas e ginecologistas, à frente dos psiquiatras, a propaganda realizada com esta medicação proporcionou grande sucesso entre esses profissionais, primeiro pela eficácia conferida, depois pelo baixo potencial de dependência proporcionado.

    Prozac: Quando o Prozac surgiu reinavam os antidepressivos tricíclicos, que até hoje não foram superados, mas produzem muitos efeitos colaterais, desvantagem que o Prozac não tem. O Prozac é representante da nova geração de antidepressivos "confortáveis", seu perfil predominantemente sobre os receptores de serotonina permitiu uma maior tolerância, com isso a eficácia tornou-se mais evidente criando uma aparência de superioridade. Esta qualidade do Prozac fez e diferença e logo foi seguido por uma leva de novas substâncias de ação semelhante, como o Zoloft, o Cipramil e o Luvox.

    Atualmente a tendência está girando para as medicações de ação dupla, antidepressivos que atuam sobre dois receptores simultaneamente, ao invés de um só. Por enquanto não se constatou nenhuma superioridade, mas são alternativas para as pessoas que não obtiveram sucesso com o Prozac ou outros inibidores seletivos da recaptação da serotonina. Além de tudo isso o Prozac possui uma propriedade que os antigos antidepressivos não tinham a capacidade de atuar em pessoas sem depressão.

    Ao contrário do que muitos pensam, os antidepressivos não possuíam nenhuma atividade sobre as pessoas sem depressão, já os inibidores seletivos da recaptação da serotonina são capazes de produzir um relaxamento sobre as pessoas sem patologias, deixam-nas despreocupadas, menos estressadas, mais tranqüilas e menos irritáveis. Essa propriedade fez a diferença, é real e não é fruto da mídia ou mitos criados a partir de casos isolados.

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  2. “Sou mais feliz ao me preparar para a certeza de que uma desgraça pode se abater sobre mim do que acreditando que incerteza de uma felicidade prometida por Deus algum dia me alcançará. Sem fé eu acredito na vida real, enquanto outros fingem não se angustiar ao pensar se sua fé o levará a algum lugar.”

    O Provocador

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