sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Os Caminhos da Liberdade 3 - -Com a Morte na Alma- Jean Paul Sartre

“A Idade da Razão”, “Sursis” e “Com a Morte na Alma” são livros fazem parte da trilogia Caminhos da Liberdade, do filósofo existencialista francês Jean Paul Sartre.

Sinopse do livro:

No primeiro, A Idade da Razão, as questões individuais predominam. No segundo volume da trilogia, Sursis, os acontecimentos políticos revelam que os projetos de vida individuais são, na verdade, determinados pelo curso da história, tornando-se ilusória a busca da liberdade num plano puramente pessoal: a liberdade é sempre vivida "em situação" e realizada no engajamento de projetos voltados para interesses humanos comunitários. Apenas um compromisso com a história pode dar sentido à existência individual. Em Com a Morte na Alma, último romance da trilogia, Sartre nos descreve indiretamente a tese do engajamento gratuito.

Trata-se de uma história que descreve a invasão das tropas alemãs na França, durante a II Guerra Mundial, em junho de 1940. Através das descrições e subjetividade de suas personagens, é possível localizar em diversos trechos do livro alguns dos principais conceitos do filósofo, que foi combatente durante esse mesmo período e esteve aprisionado em um campo de concentração.

O livro descreve principalmente a subjetividade de soldados franceses quando estes já estavam prestes a se tornarem prisioneiros de guerra, alguns, conformados com as batalhas perdidas, outros, entregando-se à morte num ato quase heróico, se para o escritor, o heroísmo não passasse de mera construção do indivíduo que é obrigado a ver-se livre para fazer escolhas.

Mathieu, um jovem professor de filosofia, entre combatentes franceses pouco instruídos, que entregam-se à incapacidade de decidirem o que fazer quando são abandonados pelo próprio general; Daniel, um pederasta que tem como objeto de desejo um jovem poeta que decide entregar-se ao suicídio; e Brunet, um comunista que mesmo preso num campo de concentração e entregue à fome e ao abandono não desiste de seus ideais, são, dentre as muitas personagens, os tipos psicológicos típicos de uma doutrina existencialista ateísta.

No livro “O Existencialismo é um Humanismo”, Sartre descreve a doutrina existencialista como não sendo apenas subjetividade pura para o indivíduo, mas também inter-subjetividade. A inter-subjetividade sugere que toda e qualquer escolha do indivíduo também diz respeito à escolha da humanidade em geral. 

O homem escolhe o próprio homem, quando faz escolhas para si mesmo, pois assim escolhe a imagem que faz do próprio homem. Quando é obrigado a ver-se livre para fazer escolhas, e percebe que nunca são exatamente certas, pois não há uma cartilha que descreva como deve ser um homem, uma vez que o homem se inventa a cada instante com suas escolhas através de seus atos, mas que ao escolher necessariamente estabelece um valor a elas, torna-se responsável não apenas por si mesmo, mas por todos os outros, pois a valoração é de ordem ética, e a ética diz respeito à sociedade. 

Nesse sentido, é necessário um certo “engajamento” gratuito, ou seja, a percepção de que a sua própria escolha é tão importante, que se todos escolhessem a mesma coisa, seria bom para todos? Podemos perceber neste ponto que essa filosofia se assemelha à ética kantiana, que é citada neste livro. Mesmo quando os homens optam por não fazer escolhas, já estão fazendo. E o não engajamento, ou seja, quando as escolhas são feitas sem a preocupação com outros homens, há o ocultamento de outros, nisso constitui um enganar-se a si mesmo, e necessariamente, ao agir de “má-fé”.

No entanto, mesmo quando existe o engajamento, a responsabilidade de optar por si mesmo e por todos é demasiada angustiante para os homens.

O homem existe porque se lança para o futuro, projeta-se no futuro. E neste livro, “Com a Morte na Alma”, estas três personagens, em especial, não conseguem se projetar num futuro, visto que a França já estava tomada pelos alemães, e eles não sabiam exatamente o que poderia acontecer. A narrativa frustrante dessas personagens nos mostra uma situação onde o engajamento, a inter-subjetividade, a angústia, as escolhas e o desespero aparecem de maneira gritante.

Mathieu, o jovem professor de filosofia, percebe-se diferente e ao mesmo tempo igual aos outros combatentes. Ele não consegue se ver projetado num futuro, pois ainda não havia decidido o que fazer, portanto, nesse momento continuava procurando um sentido para dar à sua existência. Os homens podem agir de maneiras diferentes quando expostos a uma mesma e difícil situação, mas existe o medo e todos são tomados por uma certa angústia ao serem “libertados” de seus postos, quando o general abandona-os. 

Eles não sabem ao certo o que fazer, quando não há mais ninguém para lhes dar ordens. Ao perceberem claramente que a partir desse determinado momento são livres para escolherem o seu destino, podem ficar, e lutar contra os soldados alemães, ou fugirem, ou matarem-se, e entram em um certo desespero, pois não há como renegar uma escolha, mas essas escolhas dependem desse determinado campo de possibilidades possíveis. Se ficarem em seus postos e lutarem contra os alemães, podem ser aprisionados, ou morrerem. Ou podem tornar-se empregados do exército alemão, dentre algumas possibilidades. Como não sabem ao certo o que lhes pode acontecer, alguns desejam a morte, e podem decidir ficar e serem abatidos pelos soldados alemães. Podemos perceber que o homem está condenado a ser livre, quando é obrigado a fazer escolhas.

Phillipe, o objeto de desejo de Daniel, é um jovem que havia se alistado, e sua tropa havia sido abatida. Estudara letras, era poeta. Não suportava a idéia de ser insultado, tanto pelo próprio padrasto, como a certeza de que, se vivo, haveria a distância de sua mãe. 

Sartre o descreve nos pensamentos de Daniel, como um ser narcisista. A ponto de querer suicidar-se. E Daniel o encontra exatamente nesta situação, quando o jovem aproxima-se do parapeito de uma ponte, disposto a entregar-se à morte. Mesmo optando, nesse caso, em não mais fazer escolhas, havia uma escolha feita. O desejo de se entregar reflete uma escolha. E Daniel aparece e o desafia a perceber que há muitas escolhas dentro desse campo de possibilidades, apesar de ele ter a consciência de que o jovem não poderá contar absolutamente com elas. 

O jovem não demonstra preocupação quanto ao fato de que a sua escolha reflete a escolha de toda a humanidade. Se todos optassem naquele momento pelo suicídio, seria realmente bom? Phillipe é uma bela descrição e um belo exemplo do conceito de má-fé do filósofo, pois engana-se à si mesmo.

É angustiante ao homem a percepção de que sua escolha pode ser realmente importante. É angustiante perceber que é obrigado a optar. É angustiante perceber que sempre vai optar por algo que achar que é mais importante, e que ao optar, acabará valorando sua escolha, como a melhor para todos. Mais angustiante ainda perceber que não existe a melhor opção, pois não foi o homem quem criou o homem e o homem é obrigado a inventar-se quando faz escolhas. Então a história da humanidade depende também das escolhas individuais.

“Mas eu não posso contar com homens que não conheço, apoiando-me na bondade humana, ou no interesse do homem pelo bem da sociedade, sendo aceite que o homem é livre e que não há nenhuma natureza humana em que eu possa basear-me”

O engajamento diz respeito a um certo compromisso com a humanidade, a essa consciência da própria responsabilidade dentro do campo da liberdade de fazer escolhas. O livro “Com a Morte na Alma” fala principalmente sobre isso.

“Entendemos por existencialismo uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda a verdade e toda a ação implicam um meio e uma subjetividade humanas.”

Se o homem só existe através de seus atos, podemos ter os fenômenos como modos de representação do ser. O homem atinge o seu ser através dos fenômenos. É uma espécie de adequação da consciência entre os sujeitos e os objetos externos. E através dessa adequação, o homem descobre não somente a si, como também aos outros. Todo o projeto, por mais individual que seja, tem um valor universal, pois pode ser compreendido por outros homens.

E é nesse contexto em que se encontram os soldados franceses, em que se encontra Mathieu. Ele já não tem mais ideais, já não tem mais aspirações. Já não se importa com o futuro da França, nem com o futuro dos alemães. Não se importa se a guerra terminou ou não. Não se importa em ser covarde, nem em ser herói. Mas suas escolhas na trajetória do livro refletem juízos de valor bem fundamentados.

Após ignorar atitudes as quais julgava insensatas e grosseiras, após optar diversas vezes em não se deixar abater pela futilidade de seus companheiros, decide ficar e enfrentar o exército inimigo, não em um ato de heroísmo, mas numa escolha a qual julgou ser a melhor naquele determinado momento. Apesar de nunca ter atirado em um homem, sente imenso prazer ao abater um dos “fritz”. Em outro momento da sua trajetória vital, talvez não, mas durante apenas 15 minutos, aqueles nos quais ele julgou restarem antes da sua morte, fora a melhor escolha que poderia fazer.

“Podemos dizer que há uma universalidade do homem, mas ela não é dada, é indefinidamente construída. Eu construo o universal escolhendo-me; construo-o compreendendo o projeto de qualquer outro homem, seja qual for a sua época (…). O que o existencialismo toma a peito mostrar é a ligação do caráter absoluto do compromisso livre pelo qual cada homem se realiza, realizando um tipo de humanidade (…). Não há nenhuma diferença entre ser livremente, ser como projeto, como existência que escolhe a sua essência, e ser absoluto.”

Quando o general abandona os combatentes à própria sorte, eles passam dois dias sem saber o que fazer. Tudo era mais simples, quando havia alguém para lhes dar ordens. Alguns procuram se divertir, outros fogem. Mathieu decide ficar. Sabia que era cedo demais para morrer, mas tarde demais para voltar atrás.

Sartre procura elevar o existencialismo não à mera subjetividade humana. Não é ao quietismo que ele se refere, pelo contrário. O quietismo é atitude das pessoas que pensam que os outros são capazes de fazer algo, enquanto elas não. O que percebemos nesse último livro da trilogia é o engajamento voluntário desses soldados franceses. Se colocam ali tanto numa dedicação individual, quanto na dedicação coletiva. “O homem não é mais do que o que ele faz”. Esse é o primeiro princípio do existencialismo. E aqui percebemos o quão pragmático é o existencialismo de Sartre.

Principalmente quando descreve Brunet. É um personagem marxista. Ele acredita na sua ideologia. É aprisionado, juntamente a outros franceses, em um campo de concentração. Não compreende porque os franceses, que são maioria, não se rebelam contra os alemães que os guiam ao campo. Nesse momento, ele percebe que as suas escolhas também dependem das escolhas dos outros.

Ao chegarem ao campo de concentração, são abandonados à própria sorte, sem comida. Não sabem como lidar com aquela situação, alguns enlouquecem, outros brigam, distraem-se assim. Brunet procura fazer dessa experiência uma boa oportunidade para “aliciar” camaradas para o partido comunista. Explica aos companheiros os fundamentos básicos do socialismo, e a importância da liberdade, enquanto escolha de um para todos, e de todos para um.

O marxismo já pressupõe atos, e capacidade de ação. E a ação voltada para a coletividade. Dessa forma, descrevendo Brunet, ele nos apresenta o existencialismo como uma doutrina otimista, que pressupõe a capacidade de decidir por si mesmo, e por outros.

“Pois o Existencialismo não é, nunca foi, uma mera interpretação filosófica. Sempre conteve em suas premissas fortíssimos elementos de puro pragmatismo. Partindo-se do principio de que não existe nenhum ser supremo supra-humano que estabeleça a priori as condições morais e subjetivas da existência, tem-se portanto o fato de que o homem nasce total e completamente livre. Sem limitações, sem delimitações. Está sozinho, consigo e com os demais homens. Está Obrigado a ser Livre!

Por um lado, tal pensamento poderia levar a um estado de niilismo, de dúvidas e de perplexidade, sem horizontes, ou saídas visíveis. Paradoxalmente, para Sartre (ou, pelo menos, o paradoxo é aparente à primeira vista descuidada) esta liberdade ‘compulsória’ não leva ao niilismo passivo, muito menos à repugnante auto-complacência burguesa: para se completar e assumir sua plena liberdade individual, este ‘indivíduo’ necessita da interação social. Serão inevitáveis e lógicos os pontos de encontro entre o marxismo e o existencialismo”.

É fácil cair no niilismo ao falar sobre essa filosofia. Nossas ações refletem a escolha da humanidade, já que escolhendo, valoramos a imagem do homem, e as ações dos outros homens refletem as nossas, e disso nasce a angústia, da incapacidade de saber se as escolhas feitas são realmente as melhores. Nunca saberemos. O existencialista não tomará nunca o homem como fim, pois o homem está sempre por se construir.

No final do livro, aparece uma nova personagem. Um padre, dentre os prisioneiros do campo de concentração, que tenta promover ensinamentos bíblicos. O existencialismo de Sartre é ateísta, percebemos isso através do que ele nos diz sobre as escolhas. Se Deus escolhesse pelos homens, então não haveria angústia. O existencialismo é a doutrina da ação, pois o homem decide e faz escolhas o tempo todo. 

O homem existe, enquanto procura invariavelmente transcender a própria subjetividade, mas não é capaz de fazê-lo. O fim último das escolhas humanas, assim sendo, é a liberdade. Não há como fugir da liberdade. O homem está condenado a ser livre. Livre para fazer escolhas, e inventar-se através delas.

Para  saber mais sobre Sartre, clique no link à seguir: História de Sartre na Estante do Edson Moura

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