quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Que bosta que sou (Cinismo)



Por Edson Moura

Quem sou eu com minhas ideologias falhas? Quem sou, que defendo causas perdidas? Quem sou eu que me acho um cidadão respeitável, quando na verdade minha consciência faz acusações tão duras que chego ao ponto de sentir vergonha de mim mesmo? Meu deboche, meu sarcasmo, meu ateísmo “militante”, minha não aceitação dos ditames do senso comum. Não aceitação? Merda nenhuma! Vestir apenas camisas brancas e calças pretas não faz de mim um não-alienado. 

Não sou digno de ser um admirador de Diógenes, cidadão Ateniense dos melhores, Filósofo Cínico, desprezava o conforto e as convenções sociais. Ora, não estou nem pronto para morar num barril, nem pronto para abrir mão da minha TV de 42 polegadas, do meu apartamento confortável, da comida saborosa, dos bons vinhos, da roupa limpa e cheirosa. Que bosta sou então? Um hipócrita, sim, isto sou.

Não domino meus desejos, não almejo uma vida virtuosa. Vivo gozando da frivolidade das necessidades criadas pela existência social. Apenas sei tecer críticas agudas e escárnios, demonstrando a profunda carência de sentido daquilo que as pessoas (eu), em geral, consideram importante e até sagrado. Na transgressão literária que às vezes me dou o direito de escrever, proponho a exposição das pútridas feridas morais escondidas sob o manto da (minha) hipocrisia.

De que moral posso falar? O que é a moral seria a pergunta correta, mas todos, mesmo que inconscientemente, sabemos o que é moral. A minha está arranhada, mas por quê? Sei lá, talvez por levar a cabo aquilo que muitos consideram perversão, talvez por desejar a morte de algum desafeto, talvez por fantasiar com uma mulher casada ou uma garota menor de idade. Talvez o que me fira sejam as lágrimas secas que um dia derramei por um traficante morto, quando para meu avô materno, nem sequer respeitei o luto de minha mãe. Todavia, a parte escorregadia de meu cérebro me absolve, dizendo que o marginal um dia salvara minha vida, quanto ao meu avô, esse nada fez por mim, senão fabricar minha mãe.

Julgo possuir uma ética superior, na qual acredito realmente, ética esta que gostaria de praticar com sinceridade, pois ela é muito diferente da pseudo-moral social que apenas se preocupa em obter vantagem de todas as maneiras possíveis, dando significado à frase de Maquiavel, “os fins justificam os meios”. Quem hoje está disposto a fazer um exame de consciência, quem se propõe a fazer uma reflexão profunda. Com algum empenho e acima de tudo, com muita sinceridade encontraremos personagens muito próximos de nós em pessoas com as quais convivemos diariamente. Encontraremos traços de vários personagens em nós mesmos, principalmente aqueles que julgamos serem maus, nocivos à sociedade, pervertidos, intolerantes, mesquinhos, beligerantes e falsos, muito falsos.

A falha na moral (na minha moral) é tranquilizada quando vejo não ser esta uma exclusividade do pobre, ou do inculto, ou do ateu. Pelo contrário, acredito que seja esta a característica que nivele todos os homens, e os ponham num mesmo patamar de valor. Essa degeneração nivela ricos e pobres, nobres e plebeus, analfabetos e letrados, críticos e alienados. De fato é um vírus mortal que faz da auto crítica uma necessidade vital e permanente de todos, inclusive aos que se dedicam, como eu, à Filosofia.

Aqui estou eu novamente, sentindo-me um lixo, pois a verdade é que não há remédio que alivie a dor da ferida deixada pelas verdades que encontramos escamoteadas dentro de nós mesmos. O que posso fazer é escrever textos porcarias que possam também bater no rosto dos que se dispõe a lê-los. Porque a verdade é que para escrever textos que nos deixem felizes não precisamos de muito esforço, aliás, nem precisamos mais deste tipo de escritos, já temos demais, sobretudo a Bíblia. Devo escrever coisa que nos aflijam, que nos firam, que nos deixem pensativos. 

Se o texto que escrevo não despertar o leitor com um soco no plexo solar, porque acharia que deveriam perder tempo lendo? Preciso escrever textos que nos atinjam com a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente, que revele a fraqueza dentro de cada um, como se falasse da morte de alguém que amamos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para o mais longínquo deserto, longe de qualquer presença humana. Como um suicídio. Um texto que fira o gelo abaixo de nossos pés com um machado, nos fazendo cair no mar congelado de nosso interior.

Gostaria de me achar digno de ser Diógenes. Notem que não disse que gostaria de sê-lo e sim, de me achar digno de poder ser, pois minha consciência me condena. Não sei se um dia poderei trocar os lençóis limpos por trapos imundos, a televisão pela janela, o frango pelo pão seco, a casa por um barril. Não sei se um dia poderei ser um cão assim como ele, para então poder ser admirado por não ser nada mais que um pensador rebelde, e dizer para os muitos Alexandres que existem por aí: “Saiam do meu Sol”.

Um comentário:

  1. Diógenes, o cínico e o imperador:

    Diógenes, o cínico, sentado ao chão, tomava sol recostado às rochas. Fazia frio. Um cão repousava deitado e outro coçava as pulgas; o terceiro lambia as feridas. Um latido seco rompeu a quietude daquela manhã. Uma enorme sombra o cobriu de repente. Abriu os olhos e viu um sujeito montado, de sandálias trançadas e reluzente elmo. A voz, imperativa e grave, ecoou nas rochas ao lado:

    – é você o Diógenes de que falam? O sábio que habita um barril?

    O cínico entreabriu os olhos, preguiçoso e indolente e meneou a cabeça. A voz que vinha da sombra então continuou:

    – sabes quem sou?

    Nada em resposta, insistiu:

    – sou Alexandre, o Magno. Venho de Atenas... por lá ouvi dizer que um sábio da estatura de Sócrates vivia em triste miséria, procurando justos à luz do dia, derramando-se em vinho barato, habitando um velho barril junto aos cães.

    Diógenes olhava desconfiado e esboçou um bocejo, mas conteve-se pensando nas amarras da educação que tal figura inoportuna poderia lhe exigir, depois caiu em si, percebeu que sua situação não exigia amarra alguma e bocejou tão longamente que seus olhos lacrimejaram. Alexandre, incomodado pela falta de deferência daquele velho maltrapilho, passou logo ao assunto:

    – venho para tirar-lhe de tal miséria, diga-me o que queres e lhe será concedido.

    Silêncio. Os segundos se passavam, Diógenes pensativo organizava as idéias antes de dizer:

    – qualquer coisa?

    O imperador impaciente respondeu:

    – ora, qualquer coisa! Diga-me o que desejas e lhe será concedido.

    Sem pressa, Diógenes recostou-se novamente às rochas e, com um movimento brusco com a mão esquerda, disse:

    – então movas este cavalo que estás a fazer sombra em meu Sol!

    Alexandre, o Grande, o olhou surpreso. Nada disse. Mirou o horizonte, sentiu a brisa que vinha do mar bater-lhe o rosto, fez sinal à sua comitiva e seguiu conquistando o mundo. Morreu alguns anos depois, afundado em sua megalomania. Diógenes sobreviveu muito mais, um dia de cada vez, cínico e sabiamente desapegado a qualquer coisa.

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