quinta-feira, 16 de junho de 2011

“Meu enterro”

Por Noreda Somu Tossan

Ainda jovem, quarenta e dois anos e alguns dias, ninguém nunca imagina, ninguém nunca está pronto para morrer...eu também não estava. Um dia ensolarado, pássaros cantando por todos os lados, pessoas sorrindo , indo e vindo num frenesi intermitente. Algo estava errado, ou certo, não sei bem, mas parecia-me que tudo estava passando em câmera lenta naquele dia. Poucas vezes reparei tanto nos detalhes insignificantes da vida. Era como se em algum lugar do meu ser, eu já soubesse o que estaria por vir.

Aquele ônibus desgovernado; aquele barulho assustador de pessoas gritando; o som de aço chocando-se com aço; sangue escorrendo dos corpos inertes, dilacerados; cheiro de morte, era o que eu podia sentir. Meu corpo esmagado entre uma das pilastras vermelhas da parada de ônibus Rebouças; tive a impressão de ouvir uma mulher gritar desesperada: “Ele está respirando, ele está vivo!”. Ao tempo em que tudo ia escurecendo, e eu tentava sugar o ar para dentro dos pulmões, um gosto de sangue me fez chorar. Um choro silencioso, um choro contido, apenas meu, então deixei-me levar pelo sono que se abatera e adormeci tranqüilo.

Caralho! O que eu estou fazendo aqui deitado? E essas flores? Essas pessoas, quem são? Vejo a chama de uma vela balançar suavemente de um lado para outro, então entendo tudo... estou morto. Choro novamente, desta vez grito, grito alto, mas ninguém me ouve, eles nem sabem que estou ali, a não ser pelo meu corpo estendido em meio às rosas murchas que alguém teve o péssimo gosto de escolher. Eu sempre disse que não queria rosas, não queria enterro, não queria lágrimas, nem despedidas tristes. Não queria que pessoas se lembrassem de mim assim, sem vida, tipo...morto.

Amigos, parentes, companheiros de trabalho, todos compareceram à despedida solene. Olho suas caras, vejo cada um de seus rostos e sinto vontade de chorar novamente, mas desta vez de tanto rir, pois noto a tristeza estampada em suas faces. É engraçado vê-los assim, quietos, de cabeças baixa, tentando falar palavras agradáveis para minha mãe que não se conforma com minha partida. Outros abraçam meus filhos e tentam dizer para eles que eu fui um bom homem, honesto, amigo de todos (quanta mentira). Vou passeando pela sala de velório e surpreendo-me com a nitidez com que ouço seus lábios sussurrarem frases de efeito, palavras de consolo, aforismos que eu mesmo desenvolvi, agora estão nas bocas de meus amigos.

Detenho-me em um rosto em particular, o Marcio. Parece-me que ele está à base de calmantes, mal pode se manter de pé. Chora como criança, leio seus pensamentos e ouço dizer: “Porque tão cedo meu amigo?”. Mesmo sabendo que ele não pode me ouvir, respondo: “Nunca é cedo pra se morrer Marcio!”. Sempre conversamos sobre a morte, e achei que ele saberia lidar com ela bem mais fácil do que eu. Embora ele sempre me dissesse que a morte só fere quem fica e nunca quem vai. Recordei-me de Epicuro de Samos: “A morte não nos concerne, pois quando somos ela não é, e quando ela é, nós já não somos”. (quanta besteira, olha eu aqui ainda, e ela já veio).

Outros amigos estão por ali, sinto saudades de nossas conversas, de nossos debates filosóficos, de nossas piadas. O Carlos está falando algo ao seu filho, dizendo que o Tio Edson foi para o céu. Fico irritado, esbravejo com ele, não se pode fazer isso, trair a confiança de um amigo dizendo que ele está num lugar que ele sempre acreditou não existir. Gilson, Ricardo, Helder, Baltazar, todos estão mudos. Acho que não sabem bem o que dizer, e preferem ficar calados, nem seus pensamentos dizem palavra alguma, é como se não pensassem.

Meus filhos são fortes, não vejo lágrimas em seus olhos, não vejo lamentos em suas lembranças, vez ou outra os mais novos são tomados por uma grande saudade e sentem vontade de agarrar meu cadáver e colocá-lo de pé, mas são homenzinhos de fibra e descartam a possibilidade de um milagre nessas horas. Eles sabem que a morte é um processo orgânico e que é preciso muito mais do que uma vontade desesperada para fazer uma pessoa voltar do mundo dos mortos.

É chegada a hora de descer-me ao túmulo. As emoções afloram e até os mais fortes não conseguem impedir que uma lágrima corra pela face. Dois homens descem meu caixão até o fundo frio de uma cova escura, e nesse momento uma sensação de claustrofobia invade meu pensamento. Quero pedir que não me deixem ali sozinho, minha vóz já não sai, como naqueles sonhos que não se pode gritar, é assim que estou agora. Lentamente o sonho perde suas imagens e já não consigo entender o que é real em toda essa viagem que estou fazendo. Uma paz se apossa de mim e um prazer indescritível assume o lugar do desespero, então fecho meus olhos e adormeço ao som dos punhados de terra que são atirados pelas pessoas que vão se afastando para bem longe daquele cemitério, desejando nunca estarem no meu lugar.



Edson Moura







5 comentários:

  1. Por mais racionais, frios e pensadores que possamos ser ou vir a ser, a morte do outro, principalmente do outro que amamos, nunca é digerida assim tão facilmente, pois somos muito mais paixão do que razão.

    A propósito...gostei mais da parte onde o Carlos conta para o João, seu filho, que o “tio Edson foi para o céu”...quanta mentira e hipocrisia mesmo, acreditar que você foi para o céu...você foi é para o inverno. Rsrsrsrs

    Abraços mano, e espero que seu enterro seja depois do meu....não, não, não ache que é altruísmo meu, mas pelo contrario, grande egoísmo, pois é melhor “sentir” a própria morte, não como possibilidade imanente, mas como algo que "já aconteceu", do que experimentar a dor de perder alguém...isto claro, quando não se espera e não se sabe que vai morrer. Rsrsrsrs

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  2. Obrigado por morrer antes de mim Márcio rss. Diferente do que fizeram comigo, no seu enterro será tudo como você me pediu, a saber:

    Mulheres nuas (gostosas) andando de patins de um lado para o outro.

    Cerveja bem gelada dentro de seu caixão, este, em vez de flores terá gelo em abundância.

    Um DJ tocando o hino do tricolor em versão Funk, do jeitinho que você gosta.

    E o principal: Um pastor assembleiano, fazendo uma oração de despedida, clamando a Deus que aceite este servo que fora recolhido com tanto carinho para viver eternamente junto ao pai celestial.

    Amém! KKKKKKKKK

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  3. Credo que macabro as conversas de vocês kkkkkkkk não posso deixar de dizer que foi bem construído o texto, mas que fico feliz sabendo que você esta bem vivo.

    Pois, amigo, somos vida e por isto a morte não nos traz alegria alguma, mas apenas dor, mesmo para aqueles que acreditam que ela é apenas uma passagem para a eternidade com Cristo. A morte veio através do pecado, por isto ela é tão negra quanto ele.

    Desejo que você viva, e viva abundantemente. Te amo.

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  4. Olá Guiomar minha irmãzinha em Cristo! Satisfação tê-la por aqui, nesta sala tão macabra e desoladora.
    `
    É claro que quero viver um pouco mais. Às vezes, as pessoas acham que por escrevermos contos que falam de morte (nossa morte), somos seres mórbidos e desenganados da vida, mas não é bem verdade.

    Quando escrevo sobre minha morte, estou fazendo em laboratório, praticando a introspecção saudável, analisando como seria se realmente estivesse perto, ou já morto.

    Saio dessas viagens imaginárias, profundamente feliz por estar vivo e posso reavaliar meu comportamento para comigo e para com os outros. Não temo a morte pois ela não existe para um vivo, o que faço é amar a vida enquanto espero tranquilamente que sua inimiga (a morte) bata à minha porta e me chame para dar um passeio.

    Beijão amiga!

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  5. Edu, esta questão é interessante pois, além de morto eu estarei completamente louco! rsss

    Abraços mano!

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